A Terra em fúria

MARCELO GLEISER



Folha de São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006
Micro/Macro

A Terra em fúria

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

No Brasil não ocorrem terremotos (quando ocorrem, são muito fraquinhos). Tampouco temos vulcões. Não fossem as notícias nos jornais ou na TV, onde podemos ver a devastação causada por terremotos ou erupções, teríamos a impressão de que o interior de nosso planeta é muito pacato. Nada poderia ser menos verdadeiro.

Vivemos na superfície de uma bolha de metal incandescente, a mercê de seus ajustes

Para entender de onde vem essa agitação interna, temos de começar do começo, ou seja, da origem da Terra, há 4,6 bilhões de anos. Nosso planeta nasceu junto com o Sol e os outros planetas, a partir da contração de uma enorme nebulosa rica em hidrogênio e com traços dos minerais que encontramos aqui. Para que o Sol entrasse em ignição, sua temperatura interna teve de atingir 15 milhões de graus Celsius. Já a externa é de "apenas" 6.000C. As massas que giravam à sua volta - os futuros planetas - nasceram também superaquecidas. Durante os primeiros 700 milhões de anos, o caos era total: pedaços de asteróides e cometas chocavam-se violentamente com os planetas nascentes. A própria Lua nasceu dessas colisões, quando um planeta do tamanho de Marte resvalou na Terra-bebê, arrancando-lhe um pedaço. Ao olharmos para a Lua, vemos as entranhas da Terra primitiva, devidamente resfriadas e solidificadas.

A superfície da Terra só se solidificou após 700 milhões de anos. E, se a superfície era quente a ponto de derreter rochas e minérios, o interior era muito mais. Fora o calor proveniente do processo de formação e das constantes colisões, minérios radioativos aumentavam ainda mais a temperatura interna. Como resultado, o material mais denso foi afundando em direção ao centro da Terra, enquanto o menos denso ficou na superfície, flutuando sobre esse "oceano" de rochas derretidas.

Essa diferença de densidade causou uma estratificação da Terra, que ficou dividida em camadas, como uma cebola. No centro está o material mais denso, ferro e níquel. A temperatura permanece muito elevada, a ponto de manter os metais liquefeitos: o interior da Terra é feito de ferro líquido aquecido a temperaturas de 5.000C, quase tão altas quanto as da superfície do Sol. As densidades também são gigantescas: um cubo de material do centro da Terra com um metro de lado pesa em torno de 10 toneladas. Em seguida vem o manto, formado principalmente de rochas ígneas, compostos de silício e oxigênio com temperaturas que chegam a 3.000C nas partes mais profundas. Acima do manto vem a crosta, a única parte da Terra que conhecemos bem.

Os vulcões são nosso passaporte para o interior da Terra. Já que não conseguimos ainda cavar um buraco mais profundo do que 10 km e o raio da Terra é de 6.500 km, o material expelido durante erupções vulcânicas nos traz informação direto do manto. Devido à diferença de temperatura, a crosta literalmente flutua lentamente sobre o manto. Assim é explicada a origem dos continentes. O leitor já deve ter percebido que a África e o Brasil se encaixam um no outro. Pois bem, medindo a deriva continental, geólogos estimam que há 200 milhões de anos existia apenas um continente na Terra, chamado Pangéia. Os continentes, flutuando sobre placas, foram se separando aos poucos. Quando duas placas se encontram, surgem distorções e falhas. É ao longo delas que os vulcões e terremotos se concentram. Cada terremoto ou erupção é uma lembrança de que a Terra é um planeta ativo. Vivemos na superfície duma bolha de metal incandescente, a mercê de seus caprichosos ajustes.

Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"

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