Biologia sintética
MARCELO LEITE

Folha de São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006
Ciência em Dia
Biologia sintética

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Quem tem arrepios só de ouvir falar em organismos geneticamente modificados que se segure. Vêm aí os micróbios sinteticamente reduzidos.

Está no periódico "Science" desta semana: um time espalhado por três países -Hungria, EUA e Alemanha- produziu cepas de bactérias Escherichia coli com até 15% menos DNA do que a linhagem mais comum desse cavalo de batalha dos laboratórios de microbiologia, a K-12. O microrganismo minimalista (ou minimalizado) vive tão bem quanto a K-12 normal.

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Além da curiosidade, muitos pesquisadores são adeptos da força bruta para satisfazê-la
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Simples e inofensiva, a linhagem K-12 da E. coli tornou-se uma das ferramentas preferidas da engenharia genética (não confundir com outras cepas da bactéria, que podem causar sérios problemas de saúde). Pesquisadores põem e tiram genes dela com certa facilidade, por meio de estruturas contrabandistas de DNA conhecidas como plasmídeos. Com o enxerto de genes, podem obrigá-las a produzir substâncias que não fariam por conta própria, como insulina humana.

O mesmo contrabandista permite às E. coli trocarem DNA entre si, de maneira natural, e também com outros organismos. Com isso, acumularam ao longo da evolução uma bagagem genética ponderável -as bactérias estão por aqui há pelo menos 3,5 bilhões de anos (o homem moderno tem 200 mil).

São esses genes intercambiados que diferenciam as cepas. Alguns, por exemplo, as tornam capazes de infectar seres humanos. Outros garantem uma vida pacífica nos nossos tratos intestinais.

Cientistas são uma raça curiosa, com o perdão da tautologia. Começaram a se perguntar qual seria o conjunto mínimo de genes para que os micróbios sobrevivam. Comparando no computador os genomas de duas outras bactérias, Mycoplasma genitalium e Haemophilus influenzae, Craig Venter e sua então mulher, Claire Fraser, responderam em 1995 que seriam uns 470 genes. Em teoria.

Além da curiosidade, muitos pesquisadores são adeptos da força bruta para satisfazê-la (alguém já disse que seu ofício é o de torturar a realidade para fazê-la falar). A fim de descobrir se um gene é imprescindível, usam o expediente mais óbvio: impedir sua utilização, seja por meio de uma técnica que os emudece, seja por mera extirpação.

Os alvos preferidos dessas amputações genéticas são camundongos, mas bactérias como a E. coli tampouco escapam. Várias reduções foram tentadas: com 30% de cortes, os microrganismos sobreviviam e se reproduziam com muito custo, lentamente; com 7%, viviam normalmente bem.

É o que chamam de biologia sintética. Vá lá saber por quê. A equipe coordenada por Frederick Blattner, da Universidade de Wisconsin (EUA) refinou a técnica, selecionando genes previsivelmente dispensáveis para o metabolismo do micróbio. Chegou a 15% de abatimento e ainda obteve cepas eficientes na assimilação de genes contrabandeados.

Uma versão 2.0 do velho cavalo de batalha, em resumo. Em tempo: há na equipe uma brasileira, Monika de Arruda, hoje na empresa Scarab Genomics (EUA).

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Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos "Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@...

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