O Nome do Problema é Deus
Por: Salman Rushdie, para Folha de S. Paulo (17/03/02)


A imagem mais marcante da semana foi, para mim, a de uma pequena mão de criança, enegrecida e queimada, com seus minúsculos dedinhos apertados formando um punho e esticando-se para fora do que restou de uma fogueira humana em Ahmedabad, Gujarat, na Índia. O assassinato de crianças é uma especialidade indiana, por assim dizer. Os assassinatos cotidianos de bebês indesejados do sexo feminino, o massacre de inocentes em Nellie, Assam, na década de 80, quando povoados se voltaram contra povoados vizinhos, o massacre de crianças sikhs em Nova Déli, durante as pavorosas chacinas de represália que se seguiram ao assassinato de Indira Gandhi: todos esses casos são testemunhos de nosso dom especial, que sempre se evidencia com mais brilho em épocas de agitação religiosa, para encharcar nossas crianças de querosene e lhes atear fogo, ou para cortar seus pescoços, sufocá-las ou simplesmente matá-las a golpes de um bom pedaço de pau.

Se digo "nossas", é porque escrevo na condição de indiano, homem nascido e criado na Índia, que ama a Índia profundamente e sabe que o que um de nós faz hoje qualquer um de nós é potencialmente capaz de fazer amanhã. Se me orgulho dos pontos fortes da Índia, então seus pecados também devem ser meus.

Será que sôo irado? Que bom. Envergonhado e enojado? Espero que sim. Porque neste momento, em que a Índia passa pela maior orgia de derramamento de sangue indo-muçulmano em mais de uma década, muitas pessoas estão muito longe de soar revoltadas, envergonhadas ou enojadas em grau suficiente. Chefes de polícia vêm desculpando a pouca disposição manifestada por seus homens em defender os cidadãos da Índia, sem levar em conta sua religião, dizendo que esses homens também têm sentimentos e estão sujeitos aos mesmos sentimentos que o país como um todo.

Enquanto isso, os mestres políticos da Índia tentam pôr panos quentes e repetir as mesmas mentiras tranquilizadoras de sempre, dizendo que a situação está sendo controlada. (Ninguém deve ter deixado de observar que o partido governista, o Bharatiya Janata Party, e o extremista Vishwa Hindu Parishad, ou CMH, Conselho Mundial Hindu, são organizações irmãs, saídas do mesmo ventre.) Mesmo alguns comentaristas internacionais -como, por exemplo, o jornal britânico "The Independent"- nos exortam a "evitar o pessimismo excessivo".

A verdade pavorosa sobre as chacinas comunitárias na Índia é que já nos acostumamos a elas. Acontecem de quando em quando e depois se acalmam e somem. A vida é assim mesmo, pessoal. Durante a maior parte do tempo a Índia é a maior democracia secular do mundo. Se, de quando em quando, ela coloca para fora um pouco de fel religioso louco, não devemos permitir que isso distorça o quadro maior.

É claro que há explicações políticas. Desde dezembro de 1992, quando uma horda descontrolada do CMH demoliu uma mesquita muçulmana erguida 400 anos antes, a mesquita de Babri Masjid, em Ayodhya, afirmando que ela tinha sido construída no local sagrado em que nasceu o deus Rama, fanáticos hindus vêm procurando por essa briga. O mais triste em tudo isso é que alguns muçulmanos estavam dispostos a lhes dar o que eles queriam. O criminoso ataque desferido por eles contra um trem repleto de ativistas do CMH em Godhra (trazendo horrendos ecos atávicos dos massacres de hindus e muçulmanos que lotavam trens durante os tumultos que marcaram a partilha da Índia e do Paquistão, em 1947) serviu com precisão aos objetivos dos extremistas hindus.

Está claro que o CMH já se cansou do que vê como sendo os equívocos e o radicalismo insuficiente do governo do BJP. O primeiro-ministro Atal Behari Vajpayee é mais moderado do que seu partido; além disso, lidera um governo de coalizão e, para conseguir manter a coalizão unida, tem sido obrigado a abandonar boa parte da retórica nacionalista hindu mais extrema de seu partido. Mas a coalizão não está mais funcionando. Em eleições estaduais realizadas em todo o país, o BJP está sendo massacrado. Para os incendiários do CMH, isso pode ser a gota d'água. Por que deveriam tolerar a traição de sua agenda fascista pelo governo, quando ela nem sequer resulta em vitória eleitoral?

Assim, o fracasso eleitoral do BJP (usado pela turma do não-vamos-nos-deixar-levar para mostrar que a Índia está se afastando da política calcada nas comunidades religiosas) terá provavelmente sido a faísca que ateou o fogo. O CMH está decidido a erguer um templo hindu no local onde ficava a demolida mesquita de Ayodhya -era dali que estavam vindo os mortos de Godhra- e, numa realidade idiota, repreensível e trágica, há muçulmanos na Índia igualmente decididos a opor resistência a eles. O primeiro-ministro vem insistindo que são os tribunais indianos, notoriamente lentos, que devem decidir o que é certo ou errado no caso de Ayodhya. Mas o CMH já se cansou de esperar.

Em carta enviada ao presidente da Índia, K.R. Arayanan, a respeitada escritora indiana Mahasveta Devi culpa o governo de Gujarat (liderado por um político de linha dura do BJP), sem falar no governo central, por fazer "muito pouco, tarde demais". Ela atribui a culpa pelos fatos às "ações motivadas, bem planejadas e provocantes" dos nacionalistas hindus. Entretanto outro escritor, o Prêmio Nobel de Literatura V.S. Naipaul, falando na Índia apenas uma semana antes da erupção de violência, denunciou os muçulmanos do país e elogiou o movimento nacionalista.

Os assassinos de Godhra precisam, sim, ser denunciados. Em sua carta, Mahasveta Devi exige que sejam adotadas "medidas legais rígidas" contra eles. Mas o CMH e sua outra organização correlata, a igualmente sinistra Rashtriya Swyamsevak Sangh, ou Associação de Voluntários Nacionais, na qual se inspiram tanto o BJP quanto o CMH, estão determinados a destruir essa democracia secular da qual a Índia tanto se orgulha, publicamente, e que ela faz tão pouco para proteger. Ao apoiá-los, V.S. Naipaul se transforma em colega viajante do fascismo e motivo de vergonha para o Prêmio Nobel.

O discurso político importa, sim, e explica muita coisa. Mas existe algo por baixo dele, alguma coisa que não queremos olhar diretamente na cara: o fato de que, na Índia, assim como em outras partes de nosso mundo cada vez mais sombrio, a religião é um veneno que está intoxicando nosso sangue. Onde a religião intervém, a mera inocência não constitui desculpa.

Entretanto continuamos a evitar a discussão do assunto, falando da religião na linguagem moderna e em voga que é a linguagem do "respeito". O que há para se respeitar nesses ou em quaisquer outros crimes que quase diariamente são cometidos pelo mundo afora em nome dessa força temida que é a religião? Quão bem a religião erige totens, com que resultados fatais, e com que facilidade nós nos dispomos a matar por eles! E, depois que o tivermos feito suficientes vezes, o entorpecimento resultante tornará mais fácil fazê-lo ainda outras.

Assim, o problema da Índia acaba revelando ser o problema do mundo. O que aconteceu na Índia aconteceu em nome de Deus. O nome do problema é Deus.

Salman Rushdie, 54, escritor britânico de origem indiana, é autor de "Os Versos Satânicos", "Fury: a Novel" e da coletânea de ensaios "Step Across This Line", ainda inédita.

 

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