O "Boeing" e a Vida
Jocax, Março/2005


Uma crítica freqüente dos criacionistas contra a teoria da evolução darwiniana pode ser resumida na sentença:

" Criar um ser vivo como um homem é a mesma coisa que dizer que um vendaval batendo num ferro-velho durante bilhões de anos pode montar um Boeing 707 "

Vamos supor que a probabilidade de um vendaval bater num ferro-velho e montar um Boeing 707 seja equivalente a jogar certa quantidade de dados, por exemplo, Dez mil dados, e todos eles caírem com a face “ 6” voltadas para cima. Mas a pergunta correta é: “É assim que a natureza trabalha?” ou “É assim que a evolução se processa?”.

A resposta é “Não!”.

A natureza não faz a evolução dos seres vivos se processarem como se um evento altamente improvável fosse acontecer repentinamente. Para entendermos como a evolução se processa vamos utilizar, como analogia, um jogo com dados e supor que os Dez mil dados representem o genótipo de um ser humano. Então vamos fazer com que estes 10 mil dados sejam jogados de forma a fazê-los caírem todos com a face “ 6” para cima (representando o ser humano). Isso sem ter que forçar o número “ 6” em nenhum deles. Parece impossível? Mas não é, como veremos a seguir:

Inicialmente você pega o primeiro dos Dez mil dados e o joga. Este dado vai ser o equivalente ao aparecimento da primeira molécula com capacidade de se replicar. Se não cair “ 6” na primeira vez então se joga o mesmo dado novamente. Se ainda não cair “ 6” continua-se jogando o mesmo dado até que finalmente ele caia com a face “ 6” voltada para cima. Na média, deveremos jogar seis vezes um dado para que o número desejado apareça. Devemos lembrar que uma molécula capaz de se replicar é “infinitamente” mais simples do que um ser humano completo. Mas continuamos jogando o mesmo dado até que finalmente ele cai com a face “6“ para cima. Temos então a primeira molécula replicante.

Podemos pensar que o surgimento da primeira molécula replicante seja algo mais difícil de ocorrer, na nossa analogia, do que lançar um único dado em relação aos dez mil dados que significam o ser humano. Neste caso, poderíamos então utilizar quatro, dez ou quinze dados de uma vez ao invés de um único. De qualquer forma, o importante é percebermos que o surgimento da primeira molécula replicante seja um evento muitíssimo mais fácil de acontecer do que o aparecimento de um mamífero completo. O surgimento do primeiro replicador pode ser considerado como o início da vida.

Uma vez que tenha surgido o primeiro replicante, podemos considerar que o primeiro dado tenha completado sua tarefa e terminado com a face “ 6” . Partimos então para o segundo dado. Da mesma forma vamos jogando-o, e apenas ele, seguidamente até que outro número “ 6” apareça. Isto seria equivalente, por exemplo, a uma mutação que fizesse com que o replicador produzisse uma camada protetora, como uma membrana por exemplo ou algum outro recurso que lhe fosse benéfico em termos de sobrevivência. Devemos notar que o primeiro replicador deve continuar se replicando e gerando seguidamente múltiplas cópias de si mesmo, de modo que mesmo que se uma mutação malévola ocorra (o número “ 5” , por exemplo, apareça no dado) e ocasione a morte deste replicante, vai continuar existindo muitas outras cópias idênticas que não apresentaram esta mutação deletéria.

Agora com dois dados lançados (“ 66” ) temos um replicante com uma camada protetora. Podemos considerá-la como uma bactéria rudimentar. O que é importante notar é que a QUANTIDADE MÈDIA DE VEZES que precisamos lançar os dados consecutivamente para obtermos o número 6 nos dois é apenas 12 vezes (2 x 6). De outra forma, se jogássemos os dois dados ao mesmo tempo precisaríamos de, em média, 36 lançamentos para conseguir isso. Ou seja, a natureza trabalhou, neste caso, três vezes mais rápido do que esperaríamos para formar esta bactéria de uma só vez. Mas continuemos mais um pouco.

Agora que temos dois dados com a face “ 6” que corresponderia, em nossa analogia, a uma bactéria rudimentar, ela deverá se replicar com mais eficiência e provavelmente utilizará suas primas como fonte de alimentação. Isso significa que ela é mais estável que suas primas ( que representam um único “ 6” ). Em breve estará dominando o ambiente e todas serão “ 66” . Mas as mutações continuam ocorrendo isso significa que agora estamos jogando o terceiro dado. Para que tenhamos um “ 666” , jogando um dado de cada vez, precisaremos em média de cerca de 18 tentativas (=3 x 6) no total. Se tivéssemos que jogar os três dados simultaneamente precisaríamos, em média, de 216 jogadas (6x6x6), ou seja, uma dificuldade, ou tempo, 12 vezes maior do que se jogando um dado de cada vez, que é a forma que a natureza trabalha.

A evolução trabalha assim: Lentamente, através de mutações. Os mutantes que são mais estáveis permanecem, os menos estáveis são substituídos. Ou seja, as mutações favoráveis são preservadas. Não há a necessidade de se começar o processo do zero para explicar o surgimento de um novo organismo.

Se continuássemos o nosso processo de jogar os dados quando estivéssemos jogando o décimo dado, teríamos feito cerca de 60 lançamentos. Se tivéssemos que lançar os 10 dados simultaneamente precisaríamos de mais de 60 milhões de lançamentos para conseguir os 10 dados com a face “ 6” , ou seja, a evolução trabalhou, neste caso, mais de um milhão de vezes mais rapidamente do que o processo de tentativa e erro. Grosso modo, a evolução trabalha num tempo linear enquanto a pura tentativa e erro processam em tempo exponencial. Com os nossos dez mil dados originais teríamos uma diferença que seria equivalente ao número “ 1” seguido de sete mil zeros! Isto é um tempo “infinitamente” mais rápido do que a pura tentativa e erro com os dez mil dados de uma só vez.

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