Para entendermos a teoria do “Filho Premiado” vamos, primeiramente, entender as vantagens (+), e desvantagens (-) da Reprodução Sexuada e Assexuada. A Tabela-I, abaixo, resume as principais diferenças:
Tabela II – Vantagens e desvantagens da imortalidade
10.1- Introdução
A teoria do “Filho Premiado” está baseada em duas teorias do envelhecimento: A teoria do “Bem da Espécie” (cap. 9.2) e a teoria da “Evolutividade” (9.6). Entretanto, diferentemente destas, ao invés de utilizarmos o darwinismo ortodoxo com a seleção atuando sobre o organismo individual, utilizaremos o neodarwinismo, com a seleção natural agindo sobre os genes, e, a partir daí, romperemos a barreira da seleção de grupo.
Na maioria dos casos não há conflitos entre o darwinismo ortodoxo, centrado no “fitness” do organismo individual e o neodarwinismo, baseado nos genes. Em geral o que é vantajoso para o organismo individual também o é para os genes que o compõe e vice-versa. Dessa forma, as pressões seletivas que atuam no organismo individual aplicam-se também aos seus genes. Por exemplo, se um organismo apresenta uma grande adaptabilidade (“fitness” =capacidade de sobrevivência e reprodução) ao seu meio, então é esperado que seus genes tenham suas freqüências aumentadas no “pool genético” da espécie na geração seguinte. Entretanto, nem sempre o organismo e os seus genes estão em plena concordância. Existem casos, por exemplo, em que a sobrevivência do organismo entra em conflito com a sobrevivência de seus genes.
10.2- Exemplos de conflitos
Para exemplificar alguns conflitos entre o organismo e seus genes, vejamos alguns casos hipotéticos:
10.2.1- Conflitos que favoreceriam o indivíduo em detrimento dos genes:
1-O Infanticida: Um organismo mutante que costuma se alimentar de sua cria.
Ele pode sobreviver e se procriar mais que outros organismos que não apresentam essa mutação, mas seus genes não serão beneficiados. Por esta razão é muito raro,caso exista, este hábito. Pois se alimentando de sua própria prole, tenderia a fazer diminuir a freqüência de seus genes do pool genético. Claro que esta prática poderia ser benéfica aos genes, e ao organismo, se a situação que este se encontra é de absoluta falta de alimentação, o que certamente também inviabilizaria a sobrevivência da prole. Neste caso particular, seria vantajoso aos genes que o organismo sobrevivesse mesmo que se alimentando de sua cria.
2-O Canibal: O organismo que tem por hábito caçar e comer, indistintamente, tanto organismos da própria espécie, como de outras.
Ele pode sobreviver e se reproduzir com maior eficácia do que os organismos que se alimentam exclusivamente de espécies distintas da sua. Entretanto, tal prática tende a prejudicar seus genes, pois, com este hábito, ele estaria a destruir seus próprios genes, em situações que não houvesse necessidade disso.
3-A Mãe Covarde: Uma mãe que não apresente o “instinto materno”, e não arrisque sua integridade física pela de sua prole, mesmo que a probabilidade de sofrer dano seja muito baixa.
Neste caso ela também terá seus genes reduzidos no pool genético da população em relação às que protegem sua cria, embora tal prática seja favorável à sua própria sobrevivência e reprodução.
10.2.2- Conflitos que favoreceriam os genes em detrimento do organismo
1-A Mãe Altruísta: A Mãe que arrisca a sua vida para defender sua prole.
Isso acontece na natureza quando a mãe, instintivamente, estima que arriscando sua vida, poderia fazer sobreviver sua prole. Esse instinto pode favorecer seus genes mesmo que o risco à sua vida individual seja alto, desde que a probabilidade de salvar a cria seja igualmente alta.
2-Suicídio sexual: Em algumas espécies, como a do louva-deus, e a de algumas aranhas, os machos deixam-se ser devorados pela fêmea em troca de uma cópula bem sucedida.
A fecundação pode resultar em centenas de filhotes, e assim ser vantajosa para os genes, mesmo à custa da vida do organismo-pai.
Estes exemplos servem para entender o contraste entre o darwinismo ortodoxo – centrado no organismo individual – e o neodarwinismo, centrado nos genes. Os exemplos que favorecem os genes em detrimento do organismo individual são reais, acontecem com freqüência na natureza, ao passo que os exemplos que prejudicam os genes, não. O neodarwinismo, atualmente, é a corrente mais aceita na biologia, e os exemplos acima são facilmente explicados tomando o gene, e não o organismo individual (nem mesmo a espécie), como a peça central do jogo evolutivo.
10.3- “Fitness do gene”
Poderíamos então criar o conceito de “fitness do gene” (ou “fitness” de um subgrupo de genes), que seria a adaptabilidade ou grau de adequação do gene, em contraposição ao “fitness” do organismo. O “fitness do gene” pode ser definido como a capacidade que o gene confere ao fenótipo em aumentar sua própria freqüência no “pool genético” da população.
Nos três primeiros casos do exemplo anterior (10.2.1) podemos ver que haveria redução no “fitness do gene” ou do subgrupo de genes que induzem o organismo a atacar ou a prejudicar organismos que tendem a compartilhar com ele grande quantidade de genes. Por outro lado, haveria aumento no "fitness do gene", nos casos em que os genes são beneficiados, mesmo com o risco da sobrevivência do organismo individual (Exemplos 10.2.2). Então podemos concluir que as ações, ou predisposições que prejudiquem o “fitness do gene”, devam, caso existam, serem muito raras, e por esta razão, os exemplos acima (10.2.1) não acontecem na natureza, ao passo que o oposto deve ser verdadeiro: ações ou predisposições que aumentem o “fitness do gene”, mesmo que isso prejudique o organismo individual, devem ser naturais.
10.4- “Altruísmo Parental”
O chamado “Altruísmo Parental” é o conjunto de predisposições (genéticas) que levam o organismo individual a auxiliar outros de sua espécie mesmo que isso possa prejudicar a si próprio. Quanto maior o grau de parentesco, maior tende a ser o grau de altruísmo despendido ao outro. O exemplo mais familiar é o da mãe que arrisca sua integridade física, ou mesmo sua vida, e enfrenta um predador perigoso para defender sua ninhada. Tal prática pode ser benéfica aos seus genes, que estão em seus filhos, mesmo que isso possa prejudicá-la como organismo individual. O benefício conferido aos genes, em relação ao organismo individual, justificaria evolutivamente o altruísmo parental.
10.5- “Seleção de Grupo”
A “seleção de grupo” pode ser definida como ações, práticas, predisposições instintivas, ou traços fenotípicos que beneficiam o grupo como um todo (a população ou a espécie) em detrimento do organismo individual. Em termos do darwinismo clássico, centrado no organismo individual, este conceito é quase impossível de ser aceito, pois fere os princípios da seleção natural clássica que confere maior adaptabilidade ao organismo com maior “fitness”. Por exemplo, um leão que ao abater sua caça, ao invés de comê-la, dividisse a carne com outros do bando, estaria fazendo um benefício ao grupo, mas poderia ficar muito prejudicado, com poucas possibilidades de sobrevivência e reprodução, a menos que todos os leões também fizessem isso, caso contrário tal prática lhe seria prejudicial. Entretanto, este comportamento altruísta só poderia prosperar se o ‘bando’ em que ele dividisse o alimento, fosse constituído por sua própria família, onde possui alto compartilhamento genético. Caso contrário, esta prática também não seria explicável.
Robert Wright, em sua clássica obra "O Animal Moral", escreveu sobre a seleção de grupo (p.156) [29]:
"Em sua abordagem basicamente sólida da psicologia evolucionista, Darwin sucumbiu à tentação conhecida por selecionismo grupal. Consideremos sua explicação básica para a evolução do senso moral. Em 'The descent of man' ele escreveu "um progresso no padrão de moralidade e um aumento no número de homens talentosos certamente darão a uma tribo uma enorme vantagem sobre outra. Não resta dúvida de que uma tribo em que muitos membros possuírem patriotismo, fidelidade, obediência, coragem e solidariedade em alto grau, estivessem sempre dispostos a se ajudar mutuamente e a se sacrificar pelo bem comum, sairia vitoriosa no confronto com a maioria da outras; e isto seria seleção natural."
Continua Wright :
"Sim, seria seleção natural, se isto realmente acontecesse. Mas, embora não seja impossível, quanto mais pensamos na hipótese mais improvável ela nos parece. O próprio Darwin percebera o principal empecilho apenas poucas páginas antes :"É extremamente duvidoso que os filhos de pais mais solidários e benevolentes, ou mais fiéis aos seus camaradas, fossem criados em maior número do que os descendentes de pais egoístas e traiçoeiros em uma mesma tribo." Muito ao contrário, os homens mais corajosos e mais dispostos ao sacrifício "em média pereceriam em maior número do que os demais". Um homem nobre "muitas vezes sequer deixaria filhos para herdarem sua natureza nobre". Exatamente. Portanto, mesmo que uma tribo cheio de gente generosa prevalecesse sobre uma tribo cheia de gente egoísta, é difícil imaginar como uma tribo se encheria de gente generosa, para começar....Portanto, talvez não exista maneira de os impulsos de generosidade de base biológica se impregnarem em um grupo. Mesmo que alguém por meios mágicos interviesse e implatasse genes 'solidários' em 90% da população, eles seriam constantemente vencidos por genes rivais menos enobrecedores....."
Mais adiante escreve Wright :
"...é difícil imaginar a seleção grupal disseminar alguma característica que a seleção individual não favorecesse por conta própria; é difícil imaginar a seleção natural resolver um conflito direto entre o bem-estar do grupo e o bem-estar individual em favor do grupo. Certamente podemos sonhar cenários - com determinadas taxas de migração entre grupos e determinadas taxas de extinção por grupos - em que a seleção grupal realmente desempenhou um papel importante na evolução humana. Contudo, os cenários dos selecionistas grupais tendem a ser um tanto complicados. De fato, George Williams achou-os de uma maneira geral tão incômodos que propôs em 'Adaptation and natural selection' uma tendenciosidade oficial contra eles :"Não se deve postular adaptações de um nível mais elevado do que exigem os fatos" Em outras palavras: primeiro procurem muito bem uma maneira pela qual os genes subjacentes a uma característica possam ser favorecidos em uma competição quotidiana, cabeça contra cabeça. Somente após esgotar todos os seus esforços recorra à competição entre populações distintas e, mesmo assim, com grande cautela. Esta regra tornou-se o credo oficioso do novo paradigma...."
Assim, a seleção de grupo, devido a um traço genético, só pode ser considerada uma explicação neodarwiniana válida, se houver um mecanismo lógico que comprove um benefício maior ao "fitness do gene" mesmo que prejudique o "fitness do organismo" no qual este gene estaria .
10.6- A Reprodução Sexuada
A reprodução sexuada pode ser considerada uma forma de seleção de grupo. Pois tende a prejudicar o organismo individual ao mesmo tempo em que confere benefício ao grupo como um todo (Tabela-I).
Mas por que a seleção sexual “prejudicaria” o indivíduo?
Por muitas razões: O organismo precisa procurar, se arriscar, e pode até não achar, parceiros para se procriar. Muitas vezes precisa lutar ferozmente contra outros machos pela conquista da fêmea. Na reprodução assexuada isso não acontece. O organismo também precisa gastar mais energia para isso, na reprodução assexuada isso não é necessário. Os genes geram machos, que não engravidam, sua única função biológica seria carregar o material germinativo para as fêmeas, um desperdício de energia. Além disso, o organismo só transfere metade de seus cromossomos a cada filho, na reprodução assexuada ele transfere 100% dos genes, o dobro. Então, porque a reprodução sexuada existe? Que mecanismo faria compensar o “malefício” individual?
William Donald Hamilton, biólogo e membro da Royal Society de Londres, criou uma teoria que ficou conhecida como a “Teoria da Rainha Vermelha”. Nesta teoria, Hamilton pretende explicar a necessidade da reprodução sexuada como uma forma dos organismos pluricelulares se defenderem das infecções bacterianas [19], [22]. Assim, como a taxa de crescimento das bactérias, e, portanto também de mutações, é mais rápida que dos animais pluricelulares, estes últimos precisariam conseguir uma variabilidade mais rápida para se protegerem destas mutações bacterianas. E, uma maneira de conseguir isso, seria através da reprodução sexuada, na qual a variabilidade genética poderia contrabalancear as rápidas mutações bacterianas.
Entretanto, sabemos que a imensa maioria das mutações ou são inócuas, ou malévolas. As mutações benéficas são muito mais raras. Assim sendo, a mistura de genes pela reprodução sexuada deveria, portanto, proporcionar mais organismos menos adaptados do que organismos mais adaptados, mais organismos com menor resistência às bactérias do que com mais resistência a elas. Além disso, assim como a teoria do “Bem da Espécie”, de Weissman, a teoria de Hamilton não mostra um mecanismo que responda como esta seleção de grupo poderia acontecer em termos de benefício ao gene: como, por exemplo, um “gene da sexualidade” poderia dar-se melhor que um “gene da assexualidade”?
Para responder a estas questões e também à do envelhecimento que, como veremos, estão inter-relacionadas, vamos ao nosso próximo tópico.
10.7- A Teoria do Filho Premiado
Uma resposta, que pode ser a chave para estas questões, seria o que eu chamei de a “Teoria do Filho Premiado”: A reprodução sexuada permite unir duas ou mais mutações benéficas, de dois organismos distintos, num único organismo, produzindo um “super-organismo” de alto “fitness”, sem que haja necessidade de se esperar um enorme tempo, como no caso da reprodução assexuada.
10.7.1- Na Reprodução Sexuada
A reprodução assexuada não permite uma dupla mutação benéfica num mesmo organismo sem uma boa dose de tempo ou de sorte! Vejamos, por exemplo, como é difícil às bactérias, conseguirem sobreviver a dois tipos de antibióticos, administrados simultaneamente, por não possuírem reprodução sexuada:
"...Comparado a outras bactérias, o H. pylori é um microrganismo hiper-mutável. Sua frequência de mutação é dependente do marcador considerado e varia muito entre as diversas linhagens bacterianas. Com referência à rifampicina, por exemplo, encontraram-se taxas de mutação elevadíssimas em algumas estirpes, 3x10-5, e em outras, taxas muito mais baixas, 4x10-8. Por outra parte, em relação à eritromicina a freqüência de mutação é menor, oscilando entre 1x10-7 e 5x10-9. Quanto maior for a população bacteriana no local da infecção, maior é a chance de ocorrerem mutações de resistência, eventualmente selecionáveis durante a antibioticoterapia. Considerando a média das taxas de mutação do exemplo acima, para que fossem encontradas bactérias resistentes a duas drogas seria necessária uma densidade populacional em torno de 1x1014; o que é impossível. Isso evidencia a importância das associações antibióticas..." [20]
Se estas bactérias possuíssem reprodução sexuada, uma bactéria resistente ao primeiro antibiótico poderia cruzar com outra, resistente ao segundo antibiótico, produzindo uma superbactéria resistente a ambos, que então se proliferaria.
A idéia que está por trás da “Teoria do Filho Premiado” é que não importa tanto aos genes a quantidade de sobreviventes na próxima geração quanto importa sua capacidade de sobrevivência no longo prazo. Deve valer à pena aos genes sacrificar a facilidade da reprodução assexuada, pela sexuada, mais complexa e difícil, se isso resultar numa maior capacidade de perpetuação aos genes. G. Miller retrata bem esse ponto de vista, em seu livro “A Mente Seletiva”, quando se refere à sexualidade como forma de descartar mutações, no caso, as mutações prejudiciais:
“...Para evitar que as mutações acumulem-se ao longo do tempo, a reprodução sexual assume alguns riscos. ... A maioria dos filhos herdará quase o mesmo número de mutações dos pais. Contudo, alguns podem ter sorte: Eles podem herdar um número abaixo da média de mutações do pais e um número abaixo da média também da mãe. Eles terão genes muito melhores que a média, e devem sobreviver e se reproduzir muito bem. Seus genes livres de mutações serão difundidos pelas gerações futuras. Outros filhos podem ter muito azar: eles podem herdar uma carga de mutações acima da média de mutações de ambos os pais e podem não se desenvolver absolutamente, ou podem morrer na infância. Quando morrem, levam um grande número de mutações consigo, para o esquecimento evolutivo. Este efeito é extremamente importante. Dotando a próxima geração com número desiguais de mutações, a reprodução sexual garante que pelo menos alguns dos filhos terão genes muito bons.....Como a evolução a longo prazo é uma competição em que o vencedor leva tudo, é mais importante produzir alguns filhos que terão uma chance de se saírem bem do que um número maior de filhos medíocres...” [21]
A minha crítica sobre a sexualidade existir para eliminar mutações malévolas também se aplica aqui: Mutações malévolas são eliminadas pela própria natureza. Não há necessidade da sexualidade para isso. Da mesma forma que existem bactérias sem mutações malévolas, também pode existir filhos de organismos de reprodução sexuada sem elas. Da mesma forma que as mutações malévolas prejudicam as bactérias que as portam, também podem prejudicar os organismos de reprodução sexuada que os portam reduzindo seu “fitness” e dificultando a sobrevivência do gene mutante no longo prazo.
A função dos machos, na reprodução sexuada, seria a de possibilitar que mutações benéficas sejam disseminadas pela população num ritmo muito maior do que na reprodução assexuada.
Qual seria o mecanismo que possibilitaria a reprodução sexuada?
Para respondermos a isso, vamos supor que exista, numa mesma espécie, um alelo, um gene, que induza à reprodução sexual, por exemplo, jogando gametas no seu ambiente aquático que, ao se juntarem formariam novos organismos. E existe também o alelo assexuado, que induz à reprodução assexuada. Temos então dois alelos (sexuado e assexuado), competindo na mesma espécie para sobreviver. Existem mutações que acontecem nos dois subgrupos. Um filho mutante assexuado tem as mesmas chances de receber uma mutação que a de um filho sexuado. Se a mutação é boa, ou má, isso vai beneficiar, ou prejudicar, a ambos da mesma forma. Mas suponha que este filho mutante gere gametas que irão encontrar outro gameta mutante com outra mutação benéfica.
Temos então um super organismo, um mutante com uma dupla mutação benéfica, um ser de altíssimo “fitness”, que faria com que este alelo sexual tivesse muito mais probabilidade de sobrevivência e reprodução que seu competidor assexuado. Tal fato poderia, no longo prazo, fazê-lo se fixar na espécie.
10.7.2- No Envelhecimento
Também podemos utilizar a teoria do “Filho Premiado” para explicarmos o envelhecimento. Para entendermos o processo vamos criar uma história hipotética e bastante bizarra: Suponha que um determinado governo desse um prêmio de um milhão de dólares à família de quem tivesse um filho que se suicidasse. Mas, de modo a não estimular a prática, o prêmio não seria dado logo após o suicídio, e nem a família saberia o motivo de ter ganhado o dinheiro. Assim, se o suicídio tivesse alguma origem genética, estes genes poderiam estar em algum outro membro da mesma família (os irmãos compartilham 50% dos cromossomos), e assim o valor concedido acabaria por favorecer todos os genes desta família, inclusive, e principalmente, os genes que causaram o suicídio.
Mas o que podemos depreender da bizarra história acima?
Que um gene que prejudique o “fitness” do organismo, mesmo que tal gene possa levá-lo à morte, poderá prosperar na população, se este traço causar um benefício suficientemente grande ao grupo no qual este organismo compartilha este gene, isto é, beneficiando suas cópias em outros corpos. Este é o caso do suicídio do louva-deus e de algumas espécies de aranhas. Vimos isto quando estudamos alguns conflitos entre o organismo individual e seus genes no tópico 10.2.2 acima.
Num ambiente razoavelmente estável a taxa de nascimento de uma espécie deve corresponder, na média, à sua taxa de mortalidade. Se não fosse assim, isto é, se a taxa de nascimento fosse maior que a de mortalidade a espécie cresceria até que não houvesse mais recursos naturais para alimentá-la. Se, por outro lado, a taxa de mortalidade fosse sempre maior que a de nascimento, então a espécie se extinguiria [10]. Então, vamos analisar o envelhecimento na hipótese que as espécies estão em um relativo grau de equilíbrio, a espécie poderia crescer no máximo até o limite dos recursos alimentares de seu habitat, que é a situação normal, para isto:
Taxa de Nascimento = Taxa de Morte
Assim, dentro desta condição de equilíbrio, se a espécie é imortal, isto é, se não há uma morte programada em seu DNA (não há envelhecimento), os únicos nascimentos que poderiam sobreviver, e chegar à maturidade, são os que iriam ocupar a “vaga” dos indivíduos que morressem por morte acidental como, por exemplo, brigas, acidentes, predadores, doenças etc.
Vamos agora supor uma situação hipotética limite, onde os organismos adultos de uma espécie que não envelhece, também não morrem de outras causas (além da inanição). Neste caso, todos os possíveis nascimentos desta espécie morreriam de fome antes de atingirem a maturidade, pois não haveria recursos alimentares para os nascituros. Desta forma também não haveria evolução, uma vez que não poderiam nascer organismos mutantes, que são a matéria prima da evolução. Neste caso limite, a espécie estaria parada no tempo, sem poder evoluir. E uma espécie que não evolui é uma espécie fadada a extinção já que não pode se adaptar às mudanças ambientais e nem à competição com outras espécies, e também em relação às bactérias, que causam doenças, e que tem uma taxa de mutações alta já que se reproduzem também rapidamente (teoria da Rainha Vermelha).
Concluímos então, que uma espécie em que não acontecem mortes de seus adultos acaba se extinguindo. Entretanto, como vimos, ainda podem ocorrer mortes acidentais, e isso permitiria que nascimentos, e, portanto, possíveis mutações benéficas, chegassem à maturidade e fossem transmitidas ao pool genético da espécie. Contudo, mutações são raras, e mutações benéficas muito mais raras. Por esta razão, a taxa de mortalidade acidental poderia não ser suficiente alta para que a quantidade de mutações benéficas necessárias à adaptação da espécie fosse alcançada.
Se aparecesse um gene mutante da morte (ou grupo de genes) que matasse o organismo depois que este passasse de sua fase reprodutiva, isto é, que desse tempo suficiente ao organismo para que este passasse este gene à próxima geração, este “gene da morte” poderia ser beneficiado pelo aumento que ele mesmo provocou na taxa de morte.
Temos então um caso de seleção de grupo: O “gene do envelhecimento” seria benéfico ao grupo, por permitir aumentar o número de ‘bons’ mutantes, e, assim, a taxa evolutiva da espécie, beneficiando-a. Contudo, prejudicaria o organismo individual ao matá-lo, diminuindo seu “fitness”. Para que isso seja possível, precisa haver um mecanismo que sobrepuje a perda do “fitness” do organismo individual, e, em contra partida, aumente o “fitness do gene”. E é isso que, explicaremos a seguir:
Quando o “gene do envelhecimento” mata o organismo (que já teve seus filhos) ele cria uma “vaga” (desaloca o espaço ocupado e os recursos alimentares que utilizava) no grupo local para que algum infante, ou nascituro possa chegar à maturidade sexual. É importante observar que os recursos que este organismo ocupava estão, em geral, geograficamente mais perto dos organismos que compartilhavam seus genes, como seus filhos e parentes.
Além disso, cria-se uma possibilidade de que o organismo que agora pode chegar à maturidade, seja um “super organismo”, ou seja, com a vaga aberta por esta morte, cria-se a possibilidade de que o novo organismo herde duas ou mais mutações benéficas de seus pais desde que a reprodução desta espécie seja sexuada!
Ou seja, temos um caso análogo ao do suicida de nosso exemplo bizarro anterior (ou do louva-deus), no qual a família recebia um milhão de dólares se algum filho se suicidava. No nosso caso, quem morre é um parente próximo, e quem ganha o grande prêmio é a família que é contemplada com um “filho premiado” (que possua duas ou mais mutações benéficas). Como a morte acontece no grupo local, existe uma probabilidade maior de que esta vaga seja ocupada por um parente do organismo que morreu do que a de um estranho longínquo, isto é, o gene que causou a morte por envelhecimento tem mais probabilidade de ocupar a vaga, por estar geograficamente perto dos recursos deixados, do que um alelo longínquo, que não compartilhe muitos genes com o organismo morto.
Se o “super organismo” que ocupou a vaga e chegou à maturidade sexual tiver um “fitness” suficientemente alto, ele irá propagar seus genes de forma muito mais vigorosa do que um organismo normal. Dessa forma, basta que o “gene do envelhecimento” consiga, uma única vez, pegar carona em um “filho-premiado” para se espalhar rapidamente pela população, beneficiando a taxa de evolução do grupo e, agora também, a do próprio “gene do envelhecimento”.
Vamos agora supor que aconteça o oposto, uma população inicialmente formada por mortais, e nasça um organismo mutante imortal (que não envelhece) que também é um “super organismo”. Neste caso, como no anterior, o gene da imortalidade deve espalhar-se rapidamente pelo ambiente local em função do “fitness” conferido pela dupla mutação benévola. E, nessa localidade, essa região onde este imortal habita, tende a se tornar também uma região de imortais, e como conseqüência, com uma baixa taxa evolutiva. Isso significa que esta região de imortais terá baixa adaptabilidade, e poderá ser “convertida” rapidamente a partir de algum organismo de maior adaptabilidade, qual seja: a de um grupo de organismos mortais. Assim, podemos concluir que o grupo dos organismos imortais, por possuir uma taxa evolutiva mais baixa, é instável, e sempre tenderão a serem substituídos por organismos mortais, de maior adaptabilidade evolutiva.
É interessante observar que a própria taxa de envelhecimento (o tempo do relógio biológico), a que está correlacionada à taxa evolutiva da espécie, deve também sofrer uma pressão seletiva de ajuste. O envelhecimento deve estar numa cadência tal que, se matar o organismo cedo demais, prejudica os genes impedindo-o de ter um número adequado de descendentes. Se deixar o organismo viver muito, impede que outros possam nascer e sobreviver. Deve haver, portanto, um nível ótimo de envelhecimento, que permita aos organismos terem um número ótimo de filhos e, ao mesmo tempo, permitir que a espécie evolua. Pesquisas recentes parecem evidenciar este paradigma de morte programada [30].
Este nível de adequação será dado pela "equação da morte", que veremos a seguir.
Resumindo:
- Num ambiente equilibrado e relativamente estável, o envelhecimento é benéfico à espécie porque aumenta a taxa de morte, e com isso a taxa evolutiva da espécie, sua adaptabilidade ao ambiente, às presas e aos seus predadores..
- O Envelhecimento, como uma adaptação evolutiva, só poderia ocorrer em espécies com reprodução sexuada, que possibilita uma maior probabilidade para a ocorrência de “super organismos” (organismos portadores de duas ou mais mutações benéficas), que podem espalhar a mutação com muito mais rapidez e eficácia.
- O “gene do envelhecimento” precisa pegar carona uma única vez em um “filho-premiado” para que se espalhe para o grupo e beneficie a espécie e o próprio gene.
- Um subgrupo de organismos imortais teria existência instável, pois, por não se adaptarem à mesma taxa dos mortais, sempre correria o risco de ser substituída por estes últimos.
- Espécies pluricelulares, de reprodução assexuada, não apresentariam senescência, mas poderiam perecer devido à acumulação de danos em seu DNA.
Continua na Parte 3/3: "A Equação da Morte"